Princípio da autonomia e da menor intervenção estatal

Princípio da autonomia e da menor intervenção estatal como um dos princípios fundamentais norteadores do Direito de Família¹

O Estado é uma organização social, política e jurídica que exerce seu poder soberano sobre um povo dentro de um território, bem como atua de forma soberana externamente.

Com o passar do tempo, o Estado se apresentou com bases ideológicas e principiológicas distintas. Enquanto o Estado liberal defendia que a liberdade era limitada pela ordem (liberdade do outro), abstendo-se de qualquer interferência, na idade contemporânea surge o Estado de Direito que objetiva impor limites ao poder estatal e submeter a todos ao cumprimento das leis, trazendo um único documento que consagrasse a separação e limitação do poder estatal e a superioridade dos direitos fundamentais.²

Logo, o Estado passou a ter uma postura de protetor-provedor-assistencialista, pretendendo abrandar as desigualdades sociais, apresentar e dispor sobre os direitos e atuar de modo a proporcioná-los.

Ao entender esse contexto histórico, entende-se por que a Constituição Federal de 1988 trouxe direitos e garantias fundamentais à pessoa humana, as quais não podem ser abolidas ou modificadas por qualquer outra lei. Tais direitos e garantias são inerentes à vida, de modo que não podem sofrer qualquer diminuição ou restrição, devendo apenas ser respeitados e ponderados.

Conjuntamente com o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da autonomia e da menor intervenção estatal surge para, mais uma vez, afirmar que o indivíduo é o centro da família, ou seja, o ordenamento jurídico deve vir a valorizar e resguardar os direitos dos sujeitos e não mais apenas o objeto, o patrimônio, ou os institutos (casamento).

Assim, da mesma forma que o princípio da dignidade humana, o princípio da autonomia e da menor intervenção estatal mudou o enfoque do nosso Estado, personificando os sujeitos e desvinculando-se dos conceitos e restrições dos institutos, sendo necessário impor limites ao Estado para que este não interfira dentro do ambiente familiar.

O art. 5º da Constituição Federal de 1988 apresenta inúmeros direitos e garantias aos cidadãos e, por assim o fazer, conferiu aos sujeitos o direito a autonomia e o respeito dentro da família. É por isso que o art. 5º, X da Constituição Federal de 1988 expressamente consagra como “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Logo, o Estado não pode interferir sobre a sexualidade dos indivíduos, na forma de constituição da família, no número de indivíduos, quais desejos, entre tantos outros assuntos que pertencem à intimidade e a vida privada das pessoas.

Inclusive, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA em casos concretos já estabeleceu que:

[…] Os arranjos familiares, concernentes à intimidade e à vida privada do casal, não devem ser esquadrinhados pelo Direito, em hipóteses não contempladas pelas exceções legais, o que violaria direitos fundamentais enfeixados no art. 5º, inc. X, da CF/88 – o direito à reserva da intimidade assim como o da vida privada -, no intuito de impedir que se torne de conhecimento geral a esfera mais interna, de âmbito intangível da liberdade humana, nesta delicada área de manifestação existencial do ser humano. […] (REsp 1107192/PR, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/04/2010, DJe 27/05/2010)

Diante disso, conciliando o princípio da autonomia, consagrado como sendo aquele que permite aos indivíduos atuarem e agirem conforme a sua vontade, com o princípio da menor intervenção estatal, tem-se que a função do Estado é apenas instrumental, ou seja, deve garantir meios para a realização pessoal de seus cidadãos.

No entanto, existem direitos e garantias que não podem ser violadas ou modificadas, ainda que seja de vontade das partes. O nosso ordenamento jurídico possui normas cogentes, imperativas, de ordem pública que devem ser aplicadas e respeitadas, ainda que as partes não o queiram.

O Estado, portanto, deve agir minimamente dentro do ambiente familiar, mas também possui um poder de cuidado, de tutela, podendo agir e interferir de forma legítima quando necessário para fazer serem respeitados os direitos e garantias e na busca do equilíbrio social.

No entanto, esse poder de tutela, de fazer valer direitos e garantias fundamentais de todos os membros da família, bem como a aplicação de normas e leis imperativas não autoriza o Estado a ter um poder fiscalizador e de controle dentro das relações familiares. O Estado não pode agir no sentido de restringir a autonomia privada, limitar as vontades e as liberdade dos indivíduos, se tais desejos e atuações não se tratarem de situações excepcionais que violem os direitos e garantias de outrem.

Havendo a atuação correta e limitada por parte do Estado, este contribuirá para a promoção e incentivo da pessoa. O princípio da autonomia privada da família funciona como um sistema de freios e contrapesos na atuação do Estado, já que no âmbito privado o direito à intimidade e liberdade dos sujeitos resulta também na personificação do indivíduo.

“O desafio fundamental para a família e das normas que a disciplinam é conseguir conciliar o direito à autonomia e à liberdade de escolha com os interesses de ordem pública”³. No entanto, vê-se que é possível uma existência harmônica, mas separada, entre o âmbito público e privado, desde que cada segmento compreenda a sua importância e a do outro, bem como sua própria área de atuação, já que ambos são essenciais para a sociedade e coexistem simultaneamente na vida dos indivíduos.


Notas de Rodapé
¹PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 181-196;
²CHEHOUD, Heloísa Sanches Querino. A liberdade religiosa nos Estados Modernos. São Paulo: Almedina, 2012, p. 35, 40-42;
³PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 194;

Referências:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, 05 de outubro de 1988. Disponível em: <Link>. Acesso em 19 Jul. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. REsp 1.107.192-PR, Recorrente: L L N, Recorrido: Ministério Público do Estado do Paraná e outros, Rel. Min. Massami Uyeda. Rel. Min. p/ Acórdão. Nancy Andrighi. Diário da Justiça, 27/05/2010. Disponível em <Link>. Acesso em 20 jul. 2020.

CHEHOUD, Heloísa Sanches Querino. A liberdade religiosa nos Estados Modernos. São Paulo: Almedina, 2012.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 181-196.